Existem duas formas de fazer
teologia, uma que adoece e outra que liberta. A teologia que adoece é aquela
que está a serviço dos poderosos, já a que liberta é a que aponta para
respostas às angústias humanas. A teologia que adoece não sabe dialogar, e segue
fórmulas preestabelecidas formadas em contextos em que a religião esteve
associada aos regimes de dominação. A teologia que liberta é, antes de tudo, capaz
de dialogar e de exercer um papel formativo e orientador, que aponta rumos e
fortalece a esperança.
Quando a teologia está a serviço
das estruturas dominantes, ela não só adoece como é o sintoma de um grave
problema de desvio de foco. Ela adoece porque está doente. Trata-se de um
aspecto que envolve toda ciência a serviço do poder e toda estrutura social que
se destina à perpetuação de privilégios de um determinado segmento (ou classe
social) sobre outro. Serve para validar as ações do poder e para sustentar as
estruturas que oprimem, exploram e vilipendiam direitos dos dominados.
Um exemplo disso é a forma com
que tem sido assimilado o slogan da campanha eleitoral do candidato vitorioso nas
eleições presidenciais brasileiras de 2018: “Brasil acima de tudo, Deus acima
de todos”. Nessa frase há duas afirmações que carecem de maior reflexão. A
primeira se refere a um certo espírito patriota, de exaltação a um nacionalismo
radical. A frase é uma reedição do primeiro verso da canção nazista alemã de
1941, que dizia “Deutschland über alles” (Alemanha acima de tudo). Mas ela não
é objeto de nosso interesse neste momento. A segunda, “Deus acima de todos”,
aponta para uma interpretação teológica que remonta a um tempo anterior, quando
a igreja começou ter um exercício político, sobretudo no período medieval. A
teologia se ocupou mais com o que se costuma chamar de teologia do alto, que
exalta o a figura do Todo-poderoso e fortalece a ideia do Deus Altíssimo.
O objetivo de tal formulação
teológica era o de fortalecer o poder do clero e do Estado cristianizado. Ela
estava vinculada a uma compreensão hierarquizada da sociedade baseada no
domínio do mais forte, na exigência de submissão absoluta ao poder instituído e
a configuração de práticas de controle e domínio fundadas no medo. Serviu de
base para o surgimento dos estados modernos e o estabelecimento do absolutismo.
Permeava as ações de comércio, de diplomacia, de relações de produção e até
mesmo de imposição de uma moral de obediência.
O que se chama teologia do alto
é aquela que se ocupa dos aspectos metafísicos da compreensão e do conhecimento
de Deus. A Modernidade, no entanto, com sua rejeição à metafísica, fez com que
a teologia se voltasse para os aspectos históricos e humanos, o que tem sido
chamado de “teologia do baixo”. Em resumo, a teologia do alto tenta esclarecer
a soberania divina, a natureza de Deus e seus atributos; a teologia do baixo se
interessa pelas formas como Deus se revela na história humana, pelo seu
esvaziamento (kenosis), sua ação em favor da justiça com atos de compaixão e de
misericórdia, com a sinalização do Reino de Deus entre os homens.
A Bíblia oferece base para ambas
abordagens. Ela fala de Deus como Senhor dos senhores, mas fala também que ele
esvaziou a si mesmo (Filipenses 2.7). Ela fala que Deus é soberano nas alturas,
mas que se revelou como o Emanuel na pessoa de Jesus Cristo (Mateus 1.23). Ela
fala que Deus não divide a sua glória com ninguém, mas também diz que ele vem a
nós. Durante seu ministério, Jesus nunca nos mostrou um Deus acima de nós, mas
que está ao nosso lado, nos amando, nos ensinando e nos encorajando. Ele chegou
a dizer para amarmos a Deus “sobre todas as
coisas”, e não para colocarmos Deus acima de todas as pessoas. Deus nunca
quis estar acima de todos. Ele mesmo se fez o Deus conosco.
Paulo fala em Romanos 9.5 que Deus está acima de tudo, com referência à importância histórica de Israel para a linhagem de Jesus Cristo. Daí a expressão latina Deus super omnia. Porém, afirmar
que Deus está acima de tudo não pode servir de empecilho para crer – e perceber
– que Ele está no meio de nós. O momento de fato não ajuda a pensamos numa fé
em um Deus solidário e que deseja estar em comunhão com todas as pessoas. Tem
sido difícil pensar no Deus que vem a nós, que se esvazia, que se rebaixa ao
ponto de ser como um de nós. E mais, tem sido um perigo dizer que Deus está ao
lado dos mais vulneráveis, dos que estão marginalizados, dos pobres, e não dos
poderosos. Mas não existe nada mais libertador do que crer num Deus amoroso que
pisa o chão da nossa história e se humaniza. Só assim eu posso entender o
quanto ele se importa com nossas dores e sofrimentos.
Essa é a grandeza de Deus: o Altíssimo vem a nós por sua vontade e se faz como um de nós. Por que temos tanta dificuldade de afirmar o valor de Deus ter se feito humano? Eu creio que Deus está entre nós, chora conosco e se importa com nossas dores. E isso é mais relevante para Ele do que ser o Todo-poderoso. Crer num Deus que partilha de nossa realidade e se envolve com nossa história é revolucionário, fortalece ao que está enfraquecido, encoraja os que se encontram abatidos. A fé no Deus altíssimo é metafísica. A fé no Deus que toma a decisão de vir a nós é humanizadora, dignifica a nossa humanidade. Uma crença não deve jamais anular a outra. Dar mais ênfase à ideia metafísica, porém, favorece a fé num Deus distante. Resgatar a humildade e o esvaziamento divino nos remete a Cristo.
Essa é a grandeza de Deus: o Altíssimo vem a nós por sua vontade e se faz como um de nós. Por que temos tanta dificuldade de afirmar o valor de Deus ter se feito humano? Eu creio que Deus está entre nós, chora conosco e se importa com nossas dores. E isso é mais relevante para Ele do que ser o Todo-poderoso. Crer num Deus que partilha de nossa realidade e se envolve com nossa história é revolucionário, fortalece ao que está enfraquecido, encoraja os que se encontram abatidos. A fé no Deus altíssimo é metafísica. A fé no Deus que toma a decisão de vir a nós é humanizadora, dignifica a nossa humanidade. Uma crença não deve jamais anular a outra. Dar mais ênfase à ideia metafísica, porém, favorece a fé num Deus distante. Resgatar a humildade e o esvaziamento divino nos remete a Cristo.
A
teologia que adoece, portanto, é aquela que coloca Deus acima de qualquer
coisa, como se ele fosse um demiurgo (um ser distante que é responsável pela
ordem do universo) ou um déspota (um tirano que age de forma arbitrária). Na frase
“Deus acima de todos”, substitua Deus por qualquer outro nome e você entenderá o
equívoco de interpretação que ela provoca: “Alá acima de todos”, “Exu acima de
todos”, “Tupã acima de todos”, “Brahma acima de todos”. Uma sociedade marcada pelo
pluralismo religioso e pelo princípio da laicidade não comporta tal afirmação como
orientadora de um governo democrático. Uma teologia que favorece uma ideologia
dessa natureza não somente adoece como também mata e manda matar.
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