O
protestantismo assistiu a história da escravidão negra com um misto de crítica,
de passividade e de silenciamento em relação às práticas que produziram toda
sorte de desumanidade, genocídio e preconceito. Poderíamos afirmar que os
vínculos com o racismo são históricos, quer seja por uma relação conivente com
a formação do discurso racista, quer seja pela omissão em seu combate, quer
seja pela sua validação.
Embora teólogos
como John Wesley tratassem a escravidão como uma aberração, não foram poucos
que encontravam justificativas bíblicas para a dominação, assim como não foram
poucos os líderes religiosos que se calaram diante da violência contra
indígenas e negros, tanto na América Latina quanto na África.
A escravidão
negra foi um empreendimento global levado a efeito, sobretudo, a partir do
interesse de nações de base protestante, como a Alemanha, a Holanda, a
Dinamarca e a Inglaterra. Entretanto, a efetivação de seu emprego se deu a
partir das colônias controladas por nações católicas e protestantes,
incluindo-se a França, a Espanha e Portugal.
Para entender
a dinâmica do racismo em meio às teses reformistas de liberdade e de afirmação
dos princípios das Escrituras que proclamam a universalidade da condição
humana, é preciso levar em conta o que estava por trás de toda argumentação. Podemos
apontar três questões teológicas que afetam a relação do protestantismo e a escravidão
negra.
A primeira questão
é de natureza antropológica: o que é o ser humano? É preciso observar o modo
como a cultural ocidental desenvolveu a identificação do negro como pessoa de
segunda categoria, com limitações intelectuais e espirituais. O Vaticano levou
quase dois séculos discutindo se o indígena na América Latina poderia ser considerado
como ser humano. Ainda no século XIX, antropólogos funcionalistas discutiam se
os negros do Sul da África eram algum elo perdido no desenolvimento do Homo
Sapiens.
A segunda
questão é de natureza política: o que é colonização? O processo de colonização
é uma invenção do capitalismo moderno, como base no liberalismo econômico, que
definia os territórios conquistados como propriedade dos conquistadores. A
colonização foi definida por três construtos ocidentais: o capitalismo, o
patriarcado e o cristianismo.
E a terceira é
de natureza moral: o que é pecado? A partir da ideia de que não há pecado ao
sul da linha do equador, houve uma licença para toda sorte de exploração,
dominação e extermínio dos povos originários dos territórios conquistados.
Primeiramente com a lógica do escravagismo, que define o trabalho como castigo
e punição. O trabalho é para negros. Quem não se submete ao trabalho servil é
indolente e preguiçoso. Aos brancos, porém, cabe serem sustentados pelo Estado.
Posteriormente, essa mentalidade se converteu em cerceamento dos direitos do
trabalho e supervalorização do rentismo.
A relação
entre protestantismo e escravidão envolve as perspectivas políticas e
econômicas que sustentam o racismo, a intolerância às religiões de matriz
africana, o preconceito e violência contra a mulher e a rejeição das pautas que
colocam em risco a hegemonia branca e ocidental.
O supremacismo
branco, o racismo, a xenofobia e outras intolerâncias e preconceitos que
neguem, anulem ou apaguem a diversidade humana são incompatíveis com a mensagem
do evangelho. Quando a Bíblia afirma que Deus amou o mundo de tal maneira, isso
implica compreender cada pessoa em sua condição, respeitando a beleza da
multiforme condição humana.
O caminho do
pluralismo e do respeito à diversidade reclama um diálogo a partir das
epistemologias do Sul, que implica a decolonização de todo o saber que dá
validação à intolerância e ao racismo, que resgate os valores dos povos originários
da América Latina e das comunidades tradicionais formadas pelos povos
africanos.
Foto: Estadão, 2015.
(Texto apresentado durante a Consulta Teológica FTL Brasil “Revisitando a Reforma Protestante desde
a América Latina”, em 19/11/2022).
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