quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Espiritualidade e cuidado de si / Spirituality and care of himself

Na passagem da modernidade para a atualidade, houve um abandono tanto das descrições ontológicas da realidade como da idéia de que existe algo que transcende e que está presente na própria realidade para se afirmar que tudo o que há é inerente à própria realidade, uma vez que é a perspectiva do eu que interpreta a realidade.
Daí o mundo não é mais compreendido a partir de uma objetividade do conhecimento por um sujeito autônomo e desapaixonado, mas condicionado histórica e culturalmente, o que faz com que o conhecimento seja sempre relativo e incompleto. Essa é a principal característica da pós-modernidade.
Michel Foucault chamou essa fragmentação e descontinuidade do pensamento contemporâneo de “heterotopias” que é a coexistência num mesmo espaço impossível de uma diversidade de mundos possíveis.
A necessidade de legitimação do saber faz surgir um novo modelo de espiritualidade que é ambíguo e ambivalente, visto que, ao rejeitar o ideal de um sujeito auto-suficiente (a desconstrução da individualidade), confronta-se com a finitude e resiste a ter que decidir entre o desespero e a fé.
Foucault, em seu A hermenêutica do sujeito, faz uma análise da expressão “tem cuidado de ti mesmo” para a filosofia como possibilidade dialógica de intersubjetividade e de autoconsciência. O que Foucault chama de espiritualidade corresponde a um conjunto de práticas que visam, não ao conhecimento, mas ao acesso à verdade, de tal maneira que não pode haver verdade sem que haja conversão ao sujeito.
A espiritualidade postula que a verdade jamais é dada de pleno direito ao sujeito. A espiritualidade postula que o sujeito, enquanto tal, não tem direito, não possui capacidade de ter acesso à verdade. Postula que a espiritualidade jamais é dada ao sujeito por um simples ato do conhecimento, ato que seria fundamentado e legitimado por ser ele o sujeito e por ter tal e qual estrutura de sujeito. Postula a necessidade de que o sujeito se modifique, se transforme, se desloque, torne-se, em certa medida e até certo ponto, outro que não ele mesmo, para ter direito o acesso à verdade. A verdade só é dada ao sujeito a um preço que põe em jogo o ser mesmo do sujeito (FOUCAULT, 2004, p. 19 e 20).
Foucault procura mostrar que, se a filosofia é a interrogação sobre os caminhos que permitem ao sujeito ter acesso à verdade, a espiritualidade, por sua vez, é “a busca, a prática, a experiência pelas quais o sujeito opera sobre si mesmo as transformações necessária para ter acesso à verdade”. A exigência da preocupação de si, mobilizando as práticas de si, é a expressão dessa natureza espiritual da filosofia. A espiritualidade implica, então a transformação do sujeito.
O pensamento de Descartes, no início da modernidade, pôs fim, na filosofia, a essa preocupação de si. Para ter acesso à verdade, para a qual o sujeito por natureza é capaz, basta aplicar bem o método, sem a necessidade de uma conversão. Foi o começo do fim da metafísica, rejeitada finalmente pelo Iluminismo.
Esse repensar contemporâneo da espiritualidade resulta em uma questão ética que, para Foucault, é a possibilidade de apontar o sujeito que constitui a si próprio como sujeito das práticas sociais.

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